Quando conseguimos ver o homem do sul além dos mitos de fundação, constatamos que existe uma identidade maior e mais abrangente entre os habitantes do Grande Sul,
compreendidos nesta expressão os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ao fazer isto, no entanto, metemos a mão em um vespeiro dos brabos, pois devemos relativizar os dois mais caros mitos dessa região: o bandeirante e o gaúcho.
Quando falo no bandeirante, refiro-me à quele caçador de Ãndios e buscador de ouro que viveu nos tempos heróicos nas imediações de São Vicente e São Paulo, aos quais é atribuÃda erroneamente a conquista das terras dos estados do sul. Não incluo nessa expressão os expedicionários do Século IX que tinham objetivos colonizadores, como os fundadores de Laguna e Lages e os desbravadores de caminhos para as tropas, como Cristóvão Pereira de Abreu, Athanagildo Pinto Martins e Francisco Loures. Quando falo em gaúcho, refiro-me à quele nômade que vivia entre as colônias portuguesa e espanhola, sem render vassalagem a nenhum rei ou autoridade. Não incluo nesta expressão os gaúchos argentinos, uruguaios e brasileiros que adotaram uma dessas nacionalidades depois.
Colocadas as coisas nesse contexto histórico, veremos que ambos, bandeirantes e gaúchos, eram predadores em relação aos assentamentos oficiais das duas coroas. No entanto, a questão não é esta. Queremos lançar alguma luz na multifacetada formação cultural do homem do sul. Como não podia ser diferente, no começo da ocupação, a cultura portuguesa da época foi se espalhando por todo o litoral do Brasil nas primeiras povoações a beira mar ou ribeirinhas, já que os portugueses eram um povo de tradição marÃtima. Essa cultura foi enriquecida com elementos culturais dos negros e dos Ãndios litorâneos. A tradição portuguesa no litoral sulino foi mais tarde tremendamente reforçada com a chegada dos açorianos. Forma-se assim a primeira coluna cultural da identidade do homem do sul.
Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, surge a necessidade de levar alimentos e meios de transporte terrestre ao interior do paÃs, montanhoso e sem rios navegáveis. Os espanhóis já haviam enfrentado o mesmo problema nas minas de Potosi. A solução era o transporte de gado em pé e, principalmente, o transporte feito pelo muar. A interiorização do sul do Brasil, com a abertura de caminhos e com a povoação surgindo ao longo deles, contou com a participação da cultura espanhola (esta já bem mesclada com a cultura indÃgena andina), trazendo a tecnologia tropeira, com seus traços culturais próprios. Foram duzentos anos de intercâmbio cultural. Desciam os mamelucos paulistas e subiam os peões mestiços de Santa-fé e Corrientes, tangendo tropas de mula e misturando cultura. Esse duradouro caldo, criou a outra coluna cultural do homem do sul, a do serrano, biriva, caboclo ou sertanejo, chamem como quiserem, mas reconheçam sua diferença para com a cultura litorânea. No extremo sul do Brasil, essas duas colunas se encontram e se misturam, mas existem lugares onde predomina a cultura portuguesa-açoriana, como se pode ver em cidades como Santo Antônio da Patrulha, Osório, Rio Pardo, taquari, Rio Grande etc (Em Santa Catarina, há lugares, como Florianópolis, onde ainda existem bolsões de cultura açoriana quase pura); e outros onde a cultura paulista - espanhola predomina, como algumas cidades missioneiras.
Enquanto os caminhos verticais levavam tropa e cultura do sul para o norte, foi se estabelecendo uma rede de caminhos laterais ou transversais que começaram a misturar as duas culturas, num vai e vem de sentido leste/oeste. Isto também foi feito por tropeiros, na forma do comércio feito no lombo de mulas cargueiras. Mais tarde, em cima dessa cultura primária, foram-se estabelecendo núcleos de imigrantes europeus, notadamente alemães, italianos e japoneses, os quais, em um processo lento e natural também misturaram sua cultura entre nós. Por fim, o Grande Sul sofre um refluxo migratório de rio-grandenses subindo para o oeste de Santa Catarina , Paraná e Mato Grosso do Sul e até mais adiante.
Respeitadas as nuanças de cada micro-região, existe uma identidade do homem do sul, assim como há uma identidade do homem do norte e do nordestino. Reconhecemos um nordestino ou um nortista quando os encontramos, assim como eles nos reconhecem quando nos encontram. Não cabe dizer aqui quais os traços que nos distinguem, basta constatar que eles existem. O que importa é que, para o bem ou para o mal, existe uma identidade cultural no Grande Sul e isto poderá vir a ser preponderante na escolha de nosso futuro.
Nilo Bairros de Brum
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