Estou compilando dados de milhares de anotações que a mais de 40 anos “garimpei” pela estrada das pesquisas que em breve farão parte do livro ”Coração de Tambor”.Alguns papéis “amarelados” pelo tempo e algumas palavras inelegíveis,fruto da pressa das anotações, porquanto os recursos maravilhosos da “modernidade” que o Mundo atual nos dá,não estavam ainda ao “nosso” alcance .A evolução foi fantástica e em meio a este “tsunami” a Cultura em geral ficou a deriva e a nossa rica cultura litorânea ,mais ainda,mas ela sobrevive, feito ilha, pois pelas “freguesias”de Torres a S. Jose do Norte, encontramos guerreiros que mantém ela acesa,agregando e permeando sempre “novidades”sem “mesmismos”.
Ah! Nosso pensar permanece o mesmo: :
Pesquisar para poder compartilhar, dividir para poder somar!
O Rosário e as irmandades
O Rosário elemento essencial na prática de rezar, constituiu-se de 165 contas, correspondentes ao número de 15 dezenas de Ave-marias e 15 Padre-nossos.
Sua história remonta aos primeiros séculos da igreja Frei Francisco Van Der Poel conta-nos que nos desertos viviam monges solitários e não sabendo ler os salmos, rezavam determinado numero de Pai-nosso e Ave-maria, utilizando pedrinhas para contar, assim preenchendo o saltério* de 150 salmos rezados.Têm-se o ano de 1090 como início provável do uso do Rosário de Maria e sua devoção, propagados por São Domingos(sec. XIII) fundador da ordem dos dominicanos.
Na Europa do sec. XIII, inicia-se a confraria religiosa de Nossa Senhora do Rosário. Após um crescimento substancial a mesma quase desapareceu nos sec XIV e XV. Para reerguê-la e impulsioná-la, publica-se “Os Admiráveis Milagres do Santo Rosário”, editado na Bélgica na cidade de Antuérpia (1658).
Em Portugal, as irmandades foram sobremodo expressivas difundindo-se pelas colônias principalmente na África e Brasil pelos missionários portugueses.
Na obra Devoção e Escravidão (Julieta Scarano), consta: “as irmandades do Reino procuraram integrar toda a população, inclusive os representantes das raças exóticas como mouros, negros e até índios que afluíssem eventualmente a Portugal”. Desta forma, ampliaram-se as confrarias, separando o negro do branco. Já em 1496 Dom Manuel expediu um alvará onde se refere a uma confraria de pretos.
*Saltério- nome dado aos hinários de Israel;Salmos.
Em Portugal existiam várias irmandades dedicadas a diversos padroeiros. O culto a Nossa Senhora do Rosário popularizou-se com a batalha de Lepanto*.A fama da santa,era tanta, que a recitação do rosário obteve através dos dominicanos intensa divulgação .Em quase todas as cidades portuguesas erigiram-se igrejas, criaram-se conventos em sua devoção.
Desde o sec. XVI ,tem-se notícias de confrarias do Rosário na Africa, conduzidas pelos dominicanos.
No Brasil elas foram introduzidas pelos jesuítas.
Já em 1552 por informações do jesuíta Antonio Pires, os negros africanos de Pernambuco reuniram-se numa confraria do Rosário, realizando procissões exclusivamente de homens negros.
As confrarias na Europa tinham por obrigação a prática de boas obras. Muitas estavam ligadas a corporações de ofícios. No Brasil, desvincularam-se dessa tradição.
A preocupação primordial voltou-se às categorias raciais e sociais e a assistência mútua de negros “agremiados”.
Ao findar dos tempos coloniais, não se criaram mais confrarias do Rosário para os brancos,pois estes preferiram a Nossa Senhora do Carmo.
As Irmandades do Rosário dos Homens Pretos segundo Edson Carneiro, exerciam pressão sobre os outras nações que não a dele e relutavam em aceitar negros e mulatos brasileiros .Os crioulos naturais do Brasil criaram a Irmandade das Mêrces, conhecida como confraria dos mulatos.
As irmandades funcionando como entidades de classe ,serviram de instrumento social ,pois através delas os homens negros procuraram adquirir status.
Na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, o acentuado espírito religioso dos açorianos* resultou na criação de confrarias e irmandades do orago (padroeiros) da igreja das povoações e outras, dedicadas ao Divino Espírito Santo e a São Miguel e Almas. Criaram-se também,irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. De acordo com registros históricos, já em 1754 fundou-se na freguesia de Viamão ,uma irmandade de negros. Em 1754 na cidade de Rio Pardo, outra irmandade similar inicia o assentamento de suas regras e reuniões.
Além do aspecto religioso e beneficente, as irmandades participavam dos festejos da comunidade e coroavam seus reis fictícios através de seus autos de Congos.
No comentário de Manuel Diegues Junior, ao lado do sentimento puramente religioso, o catolicismo que se adaptou no Brasil, trouxe o sentido de comemoração profana nas festas da igreja e talvez não nos cause estranhamento uma certa influência de festividades africanas da participação dos escravos nessas festividades religiosas.
Segundo Arthur Ramos:
“No Brasil , não existem autos populares típicos de origem exclusivamente negra.Aqueles onde inter-
veio o elemento africano em maior dose, obedecem
em ultima análise ,á técnica do desenvolvimento
dramático dos antigos autos peninsulares.Isto é, o
negro adaptou elementos que já encontrou no Bra-
sil ,trazido pelos portugueses “.
Referindo-se à coroação de Congos, diz Mario de Andrade
“ (...) os Congos, quer por influência colonial ainda
dos padres, quer por simples adaptação popular ,
estão radicalmente contagiados pelos autos religio-
sos da nossa primeira vida colonial.(...) a música
dos Congos nada apresenta que permitia garantir
nela tradições imediatamente africanas.Pelo con-
trário ,manifesta a mais extrema variedade de in-
fluência;chega mesmo a conter peças da mais in-
tegra tradição européia ,recordando especialmente
a melodia da planície portuguesa.”
Alceu Maynard Araújo considera tanto Congada, como Quicumbi, folclore artificial,criado pelo catequista,pretendendo uma visão sublimadora dos escravos e, outra,integradora do pagão, do fetichista na religião oficial.A escravatura, nas suas raízes na África ,levava a destruição das civilizações africanas procurando desagregá-la .Vieram nos tumbeiros negros de diversas tribos.A política da igreja entretanto procurou manter as nações .As nações africanas eram inimigas entre si e essas lutas continuaram aqui no Brasil. O plano então, seria evitar uma revolta contra o branco pela união das diversas nações.O folclore artificial mantinha em parte,a velha tradição.Os negros formavam tribos que se guerreavam e suas danças eram guerreiras.
Á Igreja transforma sabiamente, esse instinto guerreiro do negro numa espécie de cruzada religiosa. Surge então, um sincretismo ,misturado a atitude belicosa do negro com o sentimento religioso.
Assim , a permanência das irmandades, as coroações de reis negros em Congadas , Congos, Bailes-de congos,Ticumbis,Cacumbis,Quicumbis,Taieiras e Maçambiques reforçou a devoção à Nossa Senhora do Rosário,São Benedito e a Santa Efigênia.
Na opinião de Frei Van Der Poel na época da escravatura, os senhores de escravos tinham o máximo cuidado em separar as nações africanos por medo de uma revolta.Uma religião africana,na maioria das vezes,não era capaz de constituir elo de união entre os pretos .O catolicismo fazia essa união .Na irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Preto vemos uma coisa singular, negros livres e cativos na união da Irmandade conseguem conservar sua identidade negra, por isso, a importância das coroações dos reis fictícios ocorridas igualmente na África.
Pelas informações de Câmara Cascudo, os autos populares (ou Cucumbis, na Bahia) vêm do início do sec.XVIII e nada mais eram do que sobrevivências da coroação de monarcas africanos nas terras de origem.Pereira da Costa registra a mais remota notícia destes festejos em Pernambuco,no ano de 1706.
*Batalha de Lepanto: Na Batalha Naval de Lepanto, uma esquadra da Liga Santa (República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e Estados Pontifícios), sob o comando de João da Áustria, venceu o Império Otomano, no dia 7 de outubrode 1571, ao largo de Lepanto, na Grécia. Esta batalha representou o fim da expansão islâmica no Mediterrâneo.
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