É comum pessoas de outros estados brasileiros pensarem que no Rio Grande do Sul não tem negros. Por outra via, o gaúcho ainda tem muito a conhecer além do tradicionalismo - movimento do qual são adeptos um leque de etnias. Mas, cada uma contendo em si uma cultura rica e contribuição irrefutável no desenvolvimento de nosso estado. De nosso Brasil.
Considerado pelas estatísticas o mais rico estado brasileiro em diversidade étnica, é importante conhecermos os convivas, compreendermos e respeitarmos nossas diferenças simplesmente porque o Rio Grande é de todos nós. Não foi por falta de competência que os negros não prosperaram. Fomos roubados de nossos lares, de nossa família; em nossa terra... Privados de nossa liberdade de expressão, de trânsito. Todavia, a raça é negra é muito forte, perseverante... Não há o que detenha nossa gente na senda do progresso, graças a Deus e s nossas vozes em uníssono.
“Enquanto a caravana passa...”, nos desenvolvemos espiritualmente, nos fortalecemos aos olhos do criador enquanto seres humanos e ora caminhamos com passos mais firmes em nossos objetivos de liberdade.
Minha contribuição vem através da minha voz que canta nosso povo, nossa cultura, toda gente, nosso pedaço de chão e a terra mãe.
Desde a infância os tambores batem com meu coração e as cordas que tocam música de raiz me fascinam. Tem ginga de coisa antiga, de sangue milenar ainda vivo correndo nas veias. Talvez por essa razão, a satisfação de pesquisar, reler e contar a história da cultura musical do negro no RS seja tão grande, a cada vez. A narração que farei a seguir foi extraída de duas páginas amarelecidas pelo tempo, que me foram ofertadas pelo Ivo Ladislau, há uns 30 anos atrás, enquanto nos esgueirávamos por tortuoso caminho para chamar a atenção dos gaúchos para a cultura que teimosamente vicejava no litoral norte.
Muito embora o ano de 1737 tenha-se fixado como a data oficial da colonização no sul brasileiro, desde o século anterior nossos antepassados já circulavam por essas bandas, e muito de nossa cultura está preservada, a exemplo dos dois ternos de negros: o maçambique – formado por negros africanos e os quicumbis - composto de negros creoulos nascidos no Brasil.
Aqueles que pertenciam a fazendeiros no distrito da Villa e no de Palmares moravam no Morro Alto.
Nove dias antes da Festa do Rosário, já os quicumbis levantavam o mastro e começavam o seu batuque e a cantoria tocando os tambores; o réco-réco, que era feito de um pedaço de taquara cheio de dentes; e da puita ( puhita), que consistia de um tubo grosso de madeira fechado no fundo por um pedaço de couro, do qual pendia pelo lado de dentro um pau do tamanho do tubo. Ainda, na véspera, chegavam os moçambiques do Morro Alto, que eram recebidos em festa pelos quicumbis lá na várzea – Praça da Redenção, onde acontecia a festa, com todas as formalidades que requeria o ofício.
A apresentação dos ternos consistia na cantoria de versos por um grupo e respondido pelo outro, e o que os diferenciava era a expressão desses versos: os quicumbís cantavam o misticismo religioso, e os maçambiques nem de leve se referiam religião.
Nas obras dos compositores que aderiram vertente maçambiqueira, se ouve muito falar em machacá, uns balainhos de um palmo de comprimento e uma polegada de diâmetro cheios de uma frutinha seca chamada caeté. As vestes do maçambique, tradição mantida até os dias de hoje, eram consideradas mais simples e consistiam de calça branca com uma fita azul costurada na parte externa das pernas; um lencinho amarrado nas quatro pontas, para melhor se ajustar na cabeça; pés descalços e, acima do tornozelo, o machacá ia amarrado.
Os brancos que assistiam diziam que os mais espalhafatosos eram os quicumbis. O Capitão-chefe da dança ostentava farda, boné, espada, banda e uma fita a tiracolo. Os outros, em mangas de camisa, vestiam calças brancas e na frente, como um avental, ostentavam uma toalha branca toda cheia de laços de fita. Na cabeça cingia um capacete de papelão ornado de plumas, fitas e outras “bugigangas”. Nas pernas amarravam guizos que, com o movimento do corpo, tilintavam, ajudando no ritmo da dança.
Êta batucada sudorosa!
As 10h saíam os quicumbis da casa do festeiro, para buscar o Rei Congo e a Rainha Ginga.
Na volta, organizados em duas grandes colunas, marchavam até a igreja para a coroação do Rei Congo e da Rainha Ginga e assistiam missa oficiada pelo padre da paróquia local.
Na atualidade, no município de Osório, durante os festejos de Nossa Senhora do Rosário, a mesma cena se repete ano após ano, culminando com um churrasco no Salão Paroquial, que acolhe os festeiros, maçambiqueiros e toda a comunidade osoriense apreciadora da cultura, além de jornalistas, pesquisadores e historiadores oriundos de várias regiões do RS, Brasil e Europa.
Provavelmente, muitos de nós conhecemos um pouco da história da Rainha Ginga e do Rei Congo de cor e salteado, entretanto, ainda temos muito papel para sacramentar e fazer reconhecida nossa indelével cultura. Rui Barbosa queimou nossos papéis, mas não queimou nossa memória. Ainda que afirmem estarmos inventando a herança musical do negro escravo que nasceu, cresceu, morreu e tornou a nascer criado pardo forro nesta terra, nas areias de rios e mares, é oportuno lembrar que tudo isso se desenvolveu desde antes da data oficial da colonização no RS e que muitos de seus descendentes ganharam mundo tendo conquistado seu espaço pelo mérito da dádiva de sua arte e um “mundéu” de histórias prá contar. |