.:vivência ocorrida em 24.02.2010
Calor, belos horizontes e verticais, pessoas educadas. E assim se desenhou minha estadia em João Pessoa, capital do estado da Paraíba. Muito mais do que descanso pós-reinações do momo e turismo, fui para a cidade atraído pelo grupo Cambindas Brilhantes, que se encontram em Lucena, cidade vizinha de Jampa, maneira querida e íntima que os moradores chamam a cidade de João Pessoa. Havia tomado conhecimento deste grupo através do selo Mundo Melhor, de meu amigo Alfredo Bello, e achado ele um tanto curioso e interessante.
Mapa conferido, informações anotadas, fomos (estava acompanhado pela Rac, amiga de Porto Alegre que em um primeiro instante foi brincar carnaval no Recife) até a estação de trem, maneira mais fácil para se chegar em Lucena. Em João Pessoa, assim como em ainda muitas outras cidades do Brasil, estas velhas locomotivas são a possibilidade mais acessível e "genuína" para o transporte da população mais carente de atenção social e humana, embora não sejam institucionalmente segmentadas.
Trajeto tranquilo, descemos na estação de Cabedelo e seguimos até o local de embarque no "ferry boat", que na verdade poderia ser chamado apenas de "balsa". Também muito barato, é esta balsa o transporte responsável pela travessia sobre o canal que separa as cidades de Cabedelo e Lucena, suportando até aproximadamente 100 pessoas e 60 carros. Apesar de demorar uns 30 minutos, a distância é curta e possibilita boas imagens e vontades.
Em "terra firme", perguntei na primeira varanda onde haviam pessoas se sabiam algo sobre o grupo, suas pessoas, sede, ensaios. Ali naquela vila, distante do centro de Lucena e ao redor dos barcos, com certeza não os encontraríamos - disseram, mesmo desconhecendo o grupo. Assim sendo, pegamos um táxi e solicitamos o centro de cidade. Pescoço em diagonal na janela, a arquitetura e paisagem "rúdica" local traziam um gosto de encantamento e vontade de pés no chão para saborear o que ali se anunciava.
No centro, sem possibilidades para não se achar: cidade pequena, simpática e gentil. Descemos quase em frente å prefeitura, onde entramos e perguntamos sobre o grupo e seus integrantes. Faceiro pelo nosso interesse, o funcionário, com muito orgulho colorindo o seu sorriso, nos indicou o caminho da casa de Toinho, "contra-regra" do grupo, já que a pessoa responsável pelo grupo estava viajando.
Palmas batidas e uma senhora - irmã de Toinho -, pela janela da porta, nos atendeu. Nos apresentamos e a deixamos ciente de nossa curiosidade. Como seu irmão não se encontrava no momento - estava trabalhando em uma obra na igreja -, nos levou até ele. Falamos para ela que não era necessário e pedimos que só nos passasse a orientação de como chegar ao local, o que já era o suficiente, mas ela insistia em nos acompanhar, alegando que era longe (uns 400 metros, aproximadamente, e em linha reta) e complicado.
Talvez assustado com minhas perguntas (sem antes pedir licença e se apresentar), talvez não confortável em seu trabalho para conversas, Toinho disse que a pessoa mais recomendada para esta conversa era Mestre Zé Sabino, integrante mais antigo em atividade e, como a própria referência informa, mestre do grupo. Orientações sobre como achar Mestre Zé Sabino passadas, fomos ao seu encontro.
No caminho, aproveitamos que já estávamos próximos da casa de Zé Sabino para experimentar o "din-din", um dos sabores que se anunciavam desde a chegada em Lucena e que só se encontra por ali. Já sabíamos que o "din-din" era uma espécie de sacolé feito a base de água de coco (ou será leite de coco?), pois o taxista havia nos explicado o que é o tal do "din-din". Mas não sabíamos que ele tinha outros sabores. O meu era de manga. Delícia!
Quando batemos palmas em frente å sua casa, Zé Sabino prontamente nos atendeu, pois Toinho havia ligado para ele e o avisado de nossa visita. Mestre Zé Sabino é um gigante dentro de sua miudeza física. Abriu sua casa, puxou cadeiras, nos apresentou para a sua esposa (que já havia nos visto, sentados ao lado de sua casa, no meio fio, comendo "din-din") e com seu sorriso se mostrou disponível para minha curiosidade e registros.
Mestre Zé Sabino brinca nas Cambindas Brilhantes há muito tempo, desde quando seu pai era dono e mestre do grupo. No início, brincava de baiana. Nesta nova gestão está há 18 anos (o grupo ficou parado um bom tempo, até ser reativado por Ernestina, uma moradora da cidade, que é a responsável pelo grupo e quem chamou Zé Sabino para ser mestre) e agora, com 70 anos, pretende sair do grupo, pois "as pernas não aguentam mais". Mas ele vai ficando: não acha ninguém que se interesse e tenha conhecimento suficiente para o "posto".
São mais de 40 músicas, cantadas de acordo com as passagens da brincadeira. "Tem música pra entrar, tem música pra sair. Tá tudo anotado no livro", diz Mestre Zé Sabino, que não compões músicas e que ainda canta as músicas antigas. O livro ao qual se refere é o roteiro escrito por Ernestina, com as lembranças e informações que possuía da brincadeira. Sem esse roteiro, muitas coisas teriam sido perdidas. Perguntado sobre quando surgiu o grupo, Zé Sabino diz que vem da África, lá de 1888.
Olhando as fotos que me mostrou, deu pra se chegar em algumas constatações (e não em conclusões). Em algumas fotos percebe-se uma maneira de tocar muito semelhante com a forma em que se toca no Maracatu Nação Estrela Brilhante de Igarassu. Bombos parecidos, baqueta na mão e um bacalhau como rebaque. O próprio mestre diz que é "tudo muito igual". Porém, observando um vídeo do grupo, não se percebe essa semelhança, a forma de tocar já é outra.
Uma das músicas cantadas é em muito semelhante com uma toada também cantada em Igarassu, com algumas pequenas diferenças. Ela diz "aruanda lelê / aruanda lalá / aruanda que tá na tenda / que tá na tenda / que tá no mundo / no mundo de tarará". Esses dois grupos e seus integrantes talvez nem tenham conhecimento um do outro, mas possuem uma ligação invisível, que vem de um tempo no qual as coisas eram diferentes.
É preciso reparar no mapa e conhecer um pouco da história e seus processos migratórios. O Estrela Brilhante de Igarassu, nação de maracatu mais antiga em atividade com mais de 180 anos, tem sua sede e história na cidade de mesmo nome. Igarassú está tão próximo å Goiana como de Recife, capital de Pernambuco (aproximadamente é o meio do caminho entre estas duas cidades). Goiana, situada na zona da mata norte, faz o limite entre os estados de Pernambuco e Paraíba.
Na brincadeira dos cambindas, com exceção da Rainha e da Porta-bandeira, todos os outros componentes são homens, desde os músicos até as baianas (embaixador, lanceiro e leão coroado também são alguns dos personagens do grupo). "As mulheres não aguentavam", diz Zé Sabino. Os maracatus rurais da zona da mata norte pernambucana surgem das brincadeiras de cambindas, ou seja, brincadeiras de homens travestidos de mulheres, que ali também existiam (foi somente mais tarde que os grupos pernambucanos de cambinda passam a se chamar "maracatu rural", "maracatu de baque solto", "maracatu de orquestra", entre tantos outros nomes, e uma das hipóteses para essa mudança diz que ela ocorre através de um imposição da comissão pernambucana de carnaval).
Conforme informacões do Mundo Melhor, a história dos Cambindas Brilhantes começa há aproximadamente 80 anos, quando um senhor migra de Pitimbu - primeira praia ao sul da Paraíba e que faz divisa com Pernambuco - para Lucena. Lembro também que o Estrela Brilhante de Igarassu também canta uma toada cantada pelo Maracatu Rural Cruzeiro do Forte. Essas informações mostram que os grupos e suas gentes não só se influenciaram no passado como ainda hoje o fazem. E muito mais do que se influenciar, se ressignificam e se aproximam., mostrando cada vez mais que a cultura popular é viva e orgânica, com dinâmica própria.
Antigamente, a brincadeira durava a noite inteira, sem limite de tempo. Hoje, quando contratados - e só se tiver transporte -, brincam por durante 40 minutos å uma hora. Muitos dos seus integrantes saíram, pois bebem e preferiram a bebida, ou pela idade avançada. Zé Sabino questiona que os jovens não querem brincar e riem dos mais velhos, preferindo escutar funk e ir ao brega.
Durante a brincadeira, enquanto os reis estão sentados no trono, as baianas fazem suas evoluções e respondem aos cantos do mestre. A Dama-do-Paço carrega Dona Leopoldina, boneca de pano "branquinha que só um carvão", como ironiza Mestre Zé Sabino, vestida de branco e cheia de jóias. Assim como nos macatus-nação, com suas calungas de cera, madeira e também algumas de pano, nos maracatus rurais, no quicumbi de Rio Pardo/RS e em muitos outros folguedos do congado brasileiro e ou que se originam nas festas de coroação de reis negros existentes até o século XIX, as cambindas brilhantes também prestam homenagem aos seus antepassados nesta forma totêmica.
Não pudemos conhecer de perto os instrumentos, figurinos e adereços do grupo, pois estavam trancados na casa de Toinho, tampouco ver algum ensaio, pois quem os organiza é Ernestina. Ensaiam comumente na colônia de pescadores, local no qual Zé Sabino trabalhou por quase toda a sua vida.
Logo em seguida, uma vizinha, Josenaide Oliveira, chega em sua casa e nos repassa uma outra série de informações, principalmente sobre o seu coco de roda, "As filhas de baixo do coco", mas sobre isso escreverei em um outro momento. Assim que desliguei os equipamentos, me questionou sobre qual a utilidade das gravações e para que serviriram. Gostei muito dessa atitude. Acho importante que tenham conhecimento e posse sobre todos os registros que são feitos e colhidos sobre suas histórias e trajetórias.
Quando seus netos chegam em casa, Zé Sabino aumenta seu sorriso e se mostra mais vivo do que antes. Nos apresentou para seus netos, tiramos mais algumas fotos e nos despedimos, contentes pelo encontro e pela oportunidade em conhecer pessoa tão adorada e lúcida sobre o seu papel na cidade e nos Cambindas Brilhantes.
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